sexta-feira, 28 de setembro de 2012

~~Nina e o Papagaio da Vizinha~~


No mesmo quintal da Nina mora a vizinha e o papagaio da vizinha, que também tem um cachorro e duas tartarugas com nadadeiras.
Nina adora o papagaio da Loira, a vizinha, que chama o papagaio de Louro.
Todos os dias Nina desperta com os gritos da ave que se sente em plena floresta mesmo dentro da mínima gaiola com um pequeno poleiro. E Loira, mulher que fala alto, grita da cozinha:
- Louro, Louro, ha! ha! ha! E o Louro dá risada! 
Nina guarda as penas que o Louro solta, todas elas com tonalidades variantes e cores fortes, verde com metade vermelha, verde com reflexos azuis, verde com amarelo, verdes inteiras, azuis e vermelhas, ela guarda todas que consegue, pretende fazer um cocar. Já guardou algumas minhas também, que são brancas. O Louro é bem animado mesmo nos dias chuvosos, apronta algumas artimanhas, quer chamar a atenção. Quando quer companhia, vira o frasco de água e fala: - Ah, Louro, outra vez! Como a Loira sempre diz. Ele também faz fofoca, é só chegar uma visita e começar a falar mais baixo que ele repete: - cra, cru, cri, cri, cra, cra, num tom pequeno igual ao das fofoqueiras da casa. Também canta, assobia, chora, dá gargalhadas e fala palavrão. Apenas um, que eu não vou dizer qual é. Melhor aprender a assobiar do que falar palavrão!
Numa certa tarde de temporal, a Loira perdeu uma de suas tartarugas, que mesmo de nadadeiras, arriscavam uns passeios pelo quintal, se arrastavam. E o macho foi embora na força da enxurrada. 
Nina voltou da escola e foi conversar com a vizinha que lhe contou a perda. A menina então perguntou para a mulher porque ela não soltava o Louro para ele passear no quintal no lugar da tartaruga. Loira, analfabeta de letras mas não de números, disse que alguém poderia roubá-lo e que o Louro custava muito caro, além disso ele poderia voar e fugiria, assim ela teria que cortar as suas asas. Nina ficou apavorada e disse: - Nunca! Eu não deixo você cortar as asas dele! Eu escondo a sua tesoura e fico na frente da gaiola. A menina cuidava da ave como se fosse dela. Olhava com atenção ele se alimentar e coçava sua cabecinha com a pontinha do dedo para lhe fazer carinho. Sempre levava uma fruta e colocava pelas frestas da gaiola e então percebia que ele olhava pra ela.
Até que um dia a Loira falou que cortaria suas asas para que o Louro pudesse caminhar um pouco pela sala. Nina muito devagar foi ao quintal e sequestrou a gaiola. Levou para um canto escondido e quando a Loira percebeu foi atras dela. E a mulher gritava: - Nina, cade o Louro, Nina? A menina num silêncio total. Daí a Loira falou: -Louro, Louro!! E o Louro respondeu: Louro! Acabou o esconderijo. Só restava correr, e foi em corre-corre danado, uma brincadeira de pegar e o Louro gargalhava na gaiola.
Eu que estava olhando tudo do telhado, achei muita graça ao ver o Louro voando pelas mãos da menina para fugir da tesoura, ele ria, ria, ria. Eu também! E a menina, depois de uma queda, chorou.
Depois de acalmá-la com um copo de água com açúcar e carinho, ela entendeu que o bichinho não perderia as asas e sim parte de suas penas. Nina foi corajosa e o Louro voou pela primeira vez. As vezes ele me olha quando chego pela manhã para fazer-lhe um agrado e sempre olha quando voo de novo.


~~Musgo~~


Estava vendo nascer a lua no
brilho da pedra enquanto te lia.
Vi uns pontos verdes de musgo
úmidos no veludo da nostalgia,
do desencanto frente ao novo.
Tocou o palpar da melancolia,
a ausência da presença pura
da luz empoeirada da cultura.
Prática, ouro dentro do vício,
grandeza que acalora, habitua
e distancia do agora da aurora,
inaugura um voo que não flutua
antes que venha o calor da fonte.
Lento é lapidar a pedra ao natural
mas ela reflete o esplendor da lua.
Sentinela do saber o que procura?  
Pretende na fornalha íntima sentir
as plumas que aquecem sonhos?
E caibam no cerne da tua calma 
e acalmem a ânsia do que virá. 


Dione Scarpelli

terça-feira, 25 de setembro de 2012

~~Final da Quinta Elegia~~

Anjo: talvez haja uma praça que desconhecemos, onde, 
sobre um tapete indizível, os amantes, incapazes aqui,
pudessem mostrar suas ousadas, altivas figuras 
do ímpeto amoroso, suas torres de alegria, suas trêmulas
escadas que há muito se tocam onde nunca houve apoio:
e poderiam diante dos espectadores em círculo,
incontáveis mortos silenciosos. E estes arrojariam
suas últimas, sempre poupadas,
sempre ocultas, desconhecidas moedas de felicidade
para sempre válidas, diante do par
verdadeiramente sorridente, sobre o tapete
apaziguado. 


Rainer Maria Rilke

domingo, 23 de setembro de 2012

~~Bicho da Seda~~


Permita-se sonhar, sem se preocupar.
Não há redoma, há mel no lagar.
Sinta,  sinto o seu coração balançar.
O voo é sem hora ou lugar, 
tem instante, bastante.
A melhor hora é agora.
Não se preocupe comigo,
sou vacinada em várias esferas.
O amor está no amar, bicho da seda.
Não me leve a mal, eu te levo bem.
Estou numa missão espacial,
quer dizer, especial.
Não sou daqui, estou aqui.

Imagem: Poster Oriental em Seda, 
                 desconheço o autor

sábado, 15 de setembro de 2012

~~Albina~~


Num dia de minhas dúvidas
quando questionei o mundo,
virei as costas pro tempo e
nem quis ouvir a voz divina,
percebi uma  presença rara
aquela criança, bela menina
de fartos cabelos trançados,
brancos, viçosos, brilhantes
ao meus lado, na minha cara,
sentada no colo, mão da mãe
a limpar seus óculos de grau.
No entardecer vejo-a de novo
exuberante, firme e crescida,
e as tranças de pontas soltas.
Lá vem a vida e seus enigmas.
A beleza de tão rica, acaricia.
E a flor branca do bem querer
revela a virgem no alvorecer
a brincar na intensa claridade
com seus lisos e longos fios
dos tons alvos da eternidade,
no pescoço à mostra, um colar.


Imagem: raro beija-flor albino, Tesourão (Eupetonema macroura)




















quinta-feira, 13 de setembro de 2012

~~Narrativa~~


Em que pensas? Indagou o professor, não prestas atenção à aula!
Faça uma narrativa sobre esse enredo, o que pensas. Vale nota.
Será uma história ardente, pensou a novata.
-Ardente não basta! Soprou o diabinho do lado esquerdo, tem que queimar!
-Queimar não basta, precisa emanar perfume, disse o Anjo do lado direito.
-Precisa queimar ao ponto de desintegrar nas mãos do leitor! Falou o diabinho. Vai vender aos baldes!
-Precisa ser para sempre, valerá muito mais. Soprou o Anjo.
Deverá ser os dois, pensou a iniciante, mas não tenho gabarito. Não tenho o que o Mestre possui, o conhecimento pleno da linguagem, os meandros do verbo, a doutrina. Tenho somente posse de vivenciar esse Realismo Fantástico, que me leva pro mundo da Lua.
-Não basta! Precisa vivenciar a realidade fantástica, senão não queima! disse o diabo.
-É o suficiente, falou o Anjo, é um dom!
Pensativa, a aluna começou a imaginar tal desafio mas gostaria mesmo era de ler pela voz do Mestre, dono da letra, essa história de romance imaginado,que ela fantasia e que ninguém acreditaria.
-É melhor que seja logo, antes que saia tiroteio! Nem preciso dizer quem falou!
-Todos sobreviverão, é apenas uma ficção! Cantou o Anjo enquanto puxava a orelha do diabinho.
Ela voltou à sua viagem e deixou um pouco de lado aquela pressão, afinal poderá escrever sobre o que quiser. E pôs-se a sonhar.

Desenho de Pablo Picasso, Sleeping Woman

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

~~Mínimo~~


ele é tão pequenino
parece uma borboleta
mínimo no meu caminho 
imenso no seu destino
passa no seu voo à jato
marca um vinco azulado
do lado ao outro da rua
em nado no nada do ar
uma versão toda pura
da beleza em velocidade
num coração de filhote
bailado do passarinho


Dione Scarpelli


sexta-feira, 7 de setembro de 2012

~~Amante Imaginário~~


Ele me leva pra dançar
e rodamos o salão inteiro.
Saímos do baile felizes
de mãos dadas, ligeiros.
Vamos caminhar ao vento
falamos pouco, mãos unidas.
Chegamos ao cheiro da praia,
guardamos os nossos sapatos
no guarda-volumes secreto
e andamos descalços na areia.
Contamos algumas histórias
de como fabricamos estrelas,
o doce não incomoda,
aquece com o sol da lua.
Sentados sob o luar,
os rios de risos soltos
mergulham no mesmo sal
e navegam o infinito mundo
destemidos em tantos planos,
abrem alvoradas distantes
temperam os vendavais.
Algum dia voltarão,
buscarão os sapatos guardados
para o baile de carnaval.
E sairão de mãos dadas
para falar das estrelas.


Foto: Salinas no Rio Grande do Norte



~~O Som do Coração~~


A solidão não dói. 
O que dói é a multidão, 
num pequeno espaço.
Gosto da sinceridade do silêncio.
No silêncio não se ouve 
falar de ninguém,
ouve-se o batimento cardíaco,
um ronco de motor,
a voz de um bicho,
o som do respirar,
um riso íntimo,
um lamento.

Um som sincero é o silêncio.
Amigo da solidão.
Aquele abraço sentido
que me abraçou sem gemido,
distante, presente de amigo
próximo, único, imensidão.

Tem dias que a palavra é muda
e fala sem um sussurro.
Agradeço o encontro do abraço 
aquele de sempre que eu preciso
diário, em qualquer horário,
o seu.